sexta-feira, 29 de abril de 2011

Sombras de Barro




(...)
A escuridão tinha descido muito depressa, e a folhagem das árvores que tinha
sido verde brilhante ainda há pouco era agora muito escura e pesada. Don Juan disse
que se eu prestasse bastante atenção à escuridão da folhagem sem focalizar meus olhos,
mas sim olhando com o rabo do olho, eu veria uma sombra fugaz cruzar meu campo de
visão.

“Esta é a hora apropriada do dia para fazer o que estou lhe pedindo que faça,”
ele disse. “Leva um momento até você conseguir a atenção necessária para fazer isto.
Não pare até que você veja aquela sombra preta”.

Eu vi algumas sombra pretas passageiras projetadas na folhagem das árvores.
Eram ou uma sombra indo de um lado para outro ou várias sombras passageiras
movendo-se da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, ou diretamente para
cima no ar. Elas me pareciam um peixe preto gordo e enorme. Era como se um peixe espada
gigantesco estivesse voando no ar. Eu fui passado a limpo na visão. Então,
finalmente, aquilo me assustou. Ficou muito escuro para ver a folhagem, contudo eu
ainda podia ver as sombras pretas passageiras.

“O que é isso, don Juan?” eu perguntei. “Vejo sombras pretas em movimento
por toda parte”.
“Ah, isso é o universo imenso lá fora”, ele disse, “incomensurável, não-linear,
fora do reino de sintaxe. Os feiticeiros do México antigo foram os primeiros a ver essas
sombras, assim eles estudaram seus movimentos. Eles as viram como você as está
vendo, e eles as viram como energia que flui no universo. E eles descobriram algo
transcendental”.

Ele parou de falar e olhou para mim. Suas pausas eram perfeitamente colocadas.
Ele sempre parava de falar quando eu estava preso por um fio.
“O que eles descobriram, Don Juan?” eu perguntei.
“Eles descobriram que nós temos companhia na vida,” ele disse, tão claramente
quanto pôde. “Nós temos um predador que veio das profundezas do cosmos e assumiu o
controle de nossas vidas. Os seres humanos são seus prisioneiros. O predador é nosso
senhor e mestre. Nos faz dóceis e desamparados. Se queremos protestar, suprime nosso
protesto. Se queremos agir independentemente, exige que não o façamos.”

Estava muito escuro ao nosso redor, e isso parecia restringir qualquer reação de
minha parte. Se fosse dia, eu teria rido até cair. Na escuridão, eu me sentia totalmente
inibido.

“Está um breu aqui”, don Juan disse, “mas se você olhar pelo canto do olho,
você ainda verá sombras em movimento, saltando ao seu redor.”
Ele estava certo. Eu ainda podia vê-las. Seu movimento me deixou atordoado.
Dom Juan acendeu a luz, e isso pareceu dissipar tudo.

“Você chegou, por seu próprio esforço, ao que os xamãs do México antigo
chamavam ‘o tópico de tópicos’”, don Juan disse. “Eu tenho usado de evasivas a esse
respeito até agora, insinuando a você que algo está nos mantendo prisioneiros.
Realmente nós somos prisioneiros! Este era um fato energético para os feiticeiros de
México antigo”.

“Por que este predador assumiu o controle do modo que você está descrevendo,
don Juan?” eu perguntei. “Deve haver uma explicação lógica”.
“Há uma explicação”, don Juan respondeu, “que é a explicação mais simples no
mundo. Eles nos dominam porque somos comida para eles, e nos apertam
impiedosamente porque somos seu sustento. Da mesma maneira que nós criamos
galinhas em galinheiros, gallineros, os predadores nos criam em gaiolas humanas,
humaneros. Então, sua comida está sempre disponível para eles.”

Eu sentia que minha cabeça estava sacudindo violentamente de um lado para o
outro. Não podia expressar meu profundo senso de desconforto e descontentamento,
mas meu corpo se moveu para trazê-lo à superfície. Eu tremi da cabeça aos pés sem
qualquer volição de minha parte.

“Não, não, não, não”, eu me ouvi dizendo. “Isto é absurdo, don Juan. O que você
está dizendo é algo monstruoso. Simplesmente não pode ser verdade, para feiticeiros ou
para homens comuns, ou para qualquer um”.
“Por que não?” don Juan calmamente perguntou. “Por que não? Porque o
enfurece?”
“Sim, me enfurece,” eu repliquei. “Essas afirmações são monstruosas!”
“Bem,” ele disse, “você não ouviu todas as afirmações ainda. Espere um pouco
mais e veja como você se sente. Eu vou sujeitá-lo a um ataque relâmpago. Aliás, eu vou
sujeitar sua mente a tremendos assaltos, e você não pode levantar e partir porque você
está preso. Não porque eu o estou prendendo, mas porque algo em você o impedirá de
partir, enquanto outra parte de você ficará totalmente desarvorada. Então prepare-se!”

(...)

“Eu quero atrair a sua mente analítica”, don Juan disse. “Pense por um
momento, e me diga como você explica a contradição entre a inteligência do homem
engenheiro e a estupidez de seus sistemas de convicções, ou a estupidez de seu
comportamento contraditório. Os feiticeiros acreditam que os predadores nos deram
nosso sistema de crenças, nossas idéias de bem e mal, nossos costumes sociais. Foram
eles que programaram nossas esperanças e expectativas e sonhos de sucesso ou
fracasso. Eles nos deram ambição, ganância, e covardia. São os predadores que nos
fazem complacentes, rotineiros, e egomaníacos”.

“Mas como eles podem fazer isto, don Juan?” eu perguntei, de alguma maneira
mais irritado com o que ele estava dizendo. “Eles sussurram tudo isso em nossos
ouvidos enquanto estamos adormecidos?”

“Não, eles não fazem assim. Isso é idiota!” Don Juan disse, sorrindo. “Eles são
infinitamente mais eficientes e organizados que isso. Para nos manter obedientes,
submissos e fracos, os predadores empreenderam uma manobra estupenda — estupenda,
claro, do ponto de vista de um combatente estrategista. Uma manobra horrenda do
ponto de vista dos que a sofrem. Eles nos deram sua mente! Entende? Os predadores
nos dão a mente deles que se torna a nossa mente. A mente dos predadores é grotesca,
contraditória, taciturna e cheia de medo de ser descoberta a qualquer momento.”

“Eu sei que embora nunca tenha passado fome,” ele continuou, “você tem
ansiedade por comida que não é diferente da ansiedade do predador que teme que a
qualquer momento sua manobra vai ser descoberta e sua comida vai ser negada. Pela
nossa mente que, afinal de contas, é a mente deles, os predadores injetam nas vidas dos
seres humanos tudo que é conveniente para eles. E eles asseguram, desta maneira, um
grau de segurança para agir como um pára-choque contra o medo deles.”

“Não é que eu não possa aceitar tudo isso desta forma, don Juan,” eu disse. “Eu
posso, mas há algo tão odioso nisso que na verdade me repele. Me força a assumir um
ponto de vista contraditório. Se é verdade que eles se alimentam de nós, como eles
fazem isso?”

Don Juan deu um largo sorriso. Ele estava tão contente quanto um saltimbanco.
Ele explicou que os feiticeiros vêem as crianças como estranhas e luminosas bolas de
energia, cobertas de cima a baixo com uma capa brilhante, algo como uma cobertura de
plástico que é ajustada firmemente em cima de seu casulo de energia. Ele disse que
aquela capa brilhante de consciência era o que os predadores consumiam, e que quando
um ser humano alcançava a idade adulta, tudo que sobrava daquela capa brilhante de
consciência era uma franja estreita que ia do chão ao topo dos dedos do pé. Aquela
franja permitia ao gênero humano continuar vivendo, mas só de forma precária.

Como em um sonho, eu ouvi Don Juan Matus explicando que, ao que ele sabia,
o homem era a única espécie que tinha a capa brilhante de consciência fora de seu
casulo luminoso. Portanto, ele se tornou presa fácil para uma consciência de uma ordem
diferente, como a consciência pesada do predador.

 Ele fez então a declaração mais prejudicial que tinha feito até então. Ele disse
que esta faixa estreita de consciência era o epicentro da auto-reflexão, onde o homem
era irremediavelmente preso. Manipulando nossa auto-reflexão, que é o único ponto de
consciência que nos restou, os predadores criam lampejos de consciência que eles em
seguida consomem de forma cruel e predatória. Eles nos dão problemas frívolos que
forçam esses lampejos de consciência a aumentar, e desta maneira nos mantêm vivos
para que eles possam ser alimentados com o brilho energético de nossas pseudopreocupações.

Deve ter havido algo tão devastador no que Don Juan estava dizendo que
naquele momento eu comecei a sentir ânsias de vômito.
Depois de uma pausa, longa bastante para eu me recuperar, perguntei a don
Juan: “Mas por que é que os feiticeiros de México antigo e todos os feiticeiros de hoje,
embora vissem os predadores, não faziam nada a respeito?”

“Não há nada que você ou eu possamos fazer sobre isso,” Don Juan disse em
uma voz triste e grave. “Tudo que nós podemos fazer é disciplinar-nos até o ponto onde
eles não poderão nos tocar. Como você pode pedir para os seres humanos que passem
por esses rigores de disciplina? Eles rirão e farão chacota de você, e os mais agressivos
irão até bater-lhe. E nem tanto porque eles não acreditem nisto. Bem fundo, nos
recônditos de todo ser humano, há um conhecimento ancestral, visceral sobre a
existência dos predadores”.

Minha mente analítica balançava de um lado para outro como um ioiô. Me
deixava e voltava e me deixava e voltava novamente. O que quer que Don Juan
estivesse propondo era irracional e inacreditável. Ao mesmo tempo, era uma coisa bem
razoável, tão simples. Explicava todo tipo de contradição humana que eu pudesse
imaginar. Mas como se poderia levar tudo isso seriamente? Don Juan estava me
empurrando no caminho de uma avalanche que poderia me levar para sempre.

Eu sentia uma outra onda de sensação ameaçadora. A onda não se originou de
mim, contudo estava presa a mim. Don Juan estava me fazendo algo misteriosamente
positivo e terrivelmente negativo ao mesmo tempo. Eu sentia isto como se fosse uma
tentativa para cortar algo como um filme fino que parecia estar colado a mim. Seus
olhos estavam cravados em mim em um olhar fixo. Ele passou a olhar para longe e
começou a falar sem olhar mais para mim.

“Sempre que as dúvidas empurrarem você para um ponto perigoso”, ele disse,
“faça algo pragmático a respeito. Apague a luz. Perscrute a escuridão; descubra o que
você pode ver”.

Ele se levantou para apagar as luzes. Eu o impedi.

“Não, não, Don Juan”, eu disse, não apague as luzes. “Eu estou bem”.
O que eu sentia então era um, para mim incomum, medo da escuridão. O mero
pensamento me fez arquejar. Eu definitivamente sabia algo visceralmente, mas não
ousaria pensar, ou trazer isto à superfície, nem em um milhão de anos!

“Você viu as sombras passageiras contra as árvores”, Don Juan disse,
recostando-se no espaldar de sua cadeira. “Isso é muito bom. Eu gostaria que você os
visse dentro deste quarto. Você não está vendo nada. Você está simplesmente
capturando imagens passageiras. Você tem bastante energia para isso”.
Eu temia que don Juan se levantasse de qualquer maneira e apagasse as luzes, o
que ele fez. Dois segundos depois, eu estava gritando a plenos pulmões. Não só
consegui um rápido lampejo dessas imagens passageiras, como eu os ouvi zumbindo em
meus ouvidos. Don Juan caiu na gargalhada enquanto acendia as luzes.

“Que sujeito temperamental!” ele disse. “Um cético total, por um lado, e um
pragmático total por outro. Você tem que organizar esta briga interna. Caso contrário,
você vai inchar como um sapo grande e estourar.”

Don Juan continuou a espetar suas farpas mais e mais profundamente em mim.

“Os feiticeiros de México antigo”, ele disse, “viam o predador. Eles o chamaram o
voador porque voa pelo ar. Não é uma bela visão. É uma sombra grande,
impenetravelmente escura, uma sombra preta que salta pelo ar. Então, pousa
pesadamente no chão. Os feiticeiros de México antigo ficavam facilmente doentes com
a idéia de quando teriam feito seu aparecimento na Terra. Eles achavam que o homem
deveria ter sido em certo ponto um ser completo, com insights estupendos e feitos de
consciência que são hoje em dia lendas mitológicas. E então tudo parece desaparecer, e
nós temos um homem sedado agora”.

Eu queria ficar com raiva, chamá-lo paranóico, mas de alguma maneira a certeza
que em geral eu tinha debaixo da superfície de meu ser não estava lá. Algo em mim
estava além do ponto de fazer minha pergunta favorita: E se tudo aquilo que ele disse
fosse verdade? No momento em que ele estava falando comigo, naquela noite, no fundo
de meu coração, sentia que tudo o que ele estava dizendo era verdade, mas ao mesmo
tempo, e com igual força, tudo aquilo que ele estava dizendo era o próprio absurdo.

“O que você está dizendo, Don Juan?” eu perguntei debilmente. Minha garganta
estava apertada. Eu quase não podia respirar.

“O que eu estou dizendo é que o que temos contra nós não é um simples
predador. É muito inteligente, e organizado. Segue um sistema metódico para nos fazer
inúteis. O Homem, o ser mágico que ele é destinado a ser, não é mais mágico. Ele é um
pedaço comum de carne. Não há nenhum sonho mais no homem a não ser os sonhos de
um animal que está sendo criado para se tornar um pedaço de carne: muito vulgar,
convencional, imbecil.”
(...)
“Este predador”, don Juan disse, “que, claro, é um ser inorgânico, não é
completamente invisível a nós, como outros seres inorgânicos são. Eu penso que quando
crianças nós podemos vê-lo e decidimos que é tão horroroso que nós não queremos
pensar nisto. Crianças, claro, podem teimar em focalizar sua visão, mas todos ao seu
redor as dissuadem de fazer isso”.

“A única alternativa deixada para o gênero humano”, ele continuou, “é a
disciplina. Disciplina é o único dissuasor. Mas por disciplina eu não quero dizer rotinas
severas. Eu não quero dizer acordar todas as manhãs às cinco e meia e entrar na água
fria até que você fique azul. Feiticeiros entendem disciplina como a capacidade para
enfrentar com serenidade imprevistos que não estão incluídos em nossas expectativas.
Para eles, disciplina é uma arte: a arte de enfrentar o infinito sem vacilar, não porque
eles são fortes e duros mas porque eles estão cheios de respeito e temor.”

“De que modo poderia a disciplina dos feiticeiros ser um impedimento?” eu
perguntei.
“Os feiticeiros dizem que disciplina torna a capa brilhante de consciência sem
sabor para o voador”, Don Juan disse, examinando minha expressão como para
descobrir qualquer sinal de descrença. “O resultado é que os predadores ficam
desnorteados. Uma capa brilhante de consciência não comestível não é parte da
cognição deles, eu suponho. Depois de ficarem confusos, eles não têm nenhum recurso
além de se abster de continuar sua tarefa abominável”.

“Se os predadores não comerem nossa capa brilhante de consciência por algum
tempo”, ele continuou, “ela continuará crescendo. Simplificando este assunto ao
extremo, eu posso dizer que feiticeiros, por meio de sua disciplina, repelem os
predadores tempo suficiente para permitir que sua capa brilhante de consciência cresça
além do nível dos dedos do pé. Uma vez que vá além do nível dos dedos do pé, cresce
de volta a seu tamanho natural”.

“Os feiticeiros de México antigo costumavam dizer que a capa brilhante de
consciência é como uma árvore. Se não é podada, cresce até seu volume e tamanho
naturais. Quando a consciência atinge níveis mais altos que os dedos do pé, tremendas
manobras de percepção se tornam naturais.”

“O truque principal desses feiticeiros de tempos antigos,” don Juan continuou,
“era sobrecarregar a mente dos voadores com disciplina. Eles descobriram que se eles
‘taxassem’ a mente dos voadores com silêncio interno, a instalação estrangeira fugiria,
dando a qualquer um dos praticantes envolvidos nesta manobra a certeza total da origem
externa da mente. A instalação estrangeira volta, eu lhe asseguro, mas não tão forte, e
começa um processo no qual o fugir da mente dos voadores se torna rotineiro, até um
dia que foge permanentemente. Um dia triste realmente! Esse é o dia em que você tem
que confiar nos seus próprios dispositivos, que são quase zero. Não há ninguém para lhe
dizer o que fazer. Não há nenhuma mente de origem alienígena para ditar as
imbecilidades às quais você está acostumado.”

“Meu professor, o nagual Julian, costumava advertir todos os seus discípulos,”
Don Juan continuou, “que este era o dia mais duro na vida de um feiticeiro, pois a
mente real que pertence a nós, a soma total de nossas experiências, depois de toda uma
vida de dominação se tornou tímida, insegura, e velhaca. Pessoalmente, eu diria que a
batalha real dos feiticeiros começa naquele momento. O resto somente é preparação.”

Retirado do livro "O Lado Ativo Do Infinito, de Carlos Cataneda"




















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